Para ilustrar e ser o mote do comentário a respeito do título da matéria da página, foi escolhida a tela chamada de “Narciso”, do mestre do barroco italiano Caravaggio (1571-1610). Apesar da tela nos dar a impressão de calma, a grande maioria da produção de Caravaggio tinha como temas passagens bíblicas, mas temperadas frequentemente com cenas de violência e crueldade. A biografia do artista foi bastante tumultuada, pois com frequência se envolvia em brigas e discussões, boemia, marginais e prostituição. Após uma briga, matou um rival, sendo perseguido por diversas cidades italianas, a fim de evitar a prisão. Porém, nesta tela o artista recria em sua visão o mito grego de narciso, em uma de suas versões. Diz a lenda que tendo evitado o amor de uma deusa que estava apaixonada por ele, esta, como vingança e com a ajuda de outro deus grego, puniu narciso, que sofreria se visualizasse sua própria imagem. Certo dia ao vislumbrar sua imagem na beira de um lago, apaixona-se pela própria imagem refletida, definhando até à morte. A tela de Caravaggio reproduz com perfeição a expressão hipnotizada do personagem, que contempla entorpecido sua imagem, enquanto uma de suas mãos tenta tocar a imagem refletida sobre a superfície da água. Apesar de distante no tempo, a tela em foco nos auxilia a fazermos um paralelo com a sociedade atual chamada de narcísica ou narcisista. No mundo contemporâneo, dentro da perspectiva da sociedade de mercado, um fenômeno social chama a atenção: o individualismo. Pode-se tentar uma definição e o sentido da palavra como sendo a centralidade do indivíduo, dentro da esfera social. Significa que a satisfação dos desejos e interesses individuais, privados, egoístas e imediatistas, é que deveria prevalecer, nas relações sociais. Um modelo atual seria a sociedade norte-americana, onde um padrão individualista sustenta a economia, a política, as relações éticas e morais e a cultura, contrabalançado com o rigor severo das leis, o qual foi “exportado” (sendo absorvido) para o restante do mundo, principalmente após a segunda guerra mundial. No século 19, o pensador francês Alex de Tocqueville estudou este fenômeno, quando viajou aos Estados Unidos, já prevendo na época a construção social do “modelo americano”. Freud explorou o mito, através de seus estudos (Introdução ao narcisismo), descrevendo o desenvolvimento desde a infância do narcisismo, o qual persiste nos habitando pelo restante da vida. Este sentimento tão potente nos seres humanos e que poderia ser chamado “o amor de si”. Em alguns casos, tal mecanismo psicológico pode “sair de controle”, o que para alguns se denomina de “narcisismo patológico”. Sabe-se que este comportamento deriva de componentes históricos do capitalismo, que criaram como consequência o “homem moderno” e a idéia de autonomia e liberdade, em relação ao pensamento medieval, que era dominado pelos elementos da tradição. Diante de um pensamento individualista que predomina nas sociedades atuais, o que se pode esperar de uma sociedade que exalta um padrão de sucesso individual, através da aquisição de bens materiais (fetiches), sem considerar os meios éticos de obtê-los; que o poder político está mais vinculado ao poder econômico e menos às idéias de se criar uma sociedade mais harmônica e justa; que o voto se define pelo eleitor-consumidor interessado em benefícios privados imediatos mais do que pensar na sociedade como um todo; que a cultura está definida mais pelo “estrelato, fama e sensualidade”, sendo publicada, editada e disseminada intensamente pelas mídias de massa (televisão, jornais, revistas, mídias digitais…), para o espectador-consumidor hedonista, independente da qualidade do que se produz como cultura, que se torna uma “verdade editada” e que convence um grande número de pessoas; onde parece que tudo pode ser obtido pelo dinheiro, inclusive a ética e a moral; e que até mesmo as instituições que deveriam resguardar um universo humanitário (justiça, religiosidade…) muitas vezes cedem ao imperativo do poder financeiro; e onde o narcisismo histriônico e exibicionista se apresenta em todas as formas, por mais banais que sejam, como nos selfies batidos e cansativos dos sorrisos teatrais no facebook! Por tudo isso, creio que a tela de Caravaggio persiste com sua atualidade, para nos fazer refletir sobre nós e o mundo que nos cerca.

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